Eu, eu mesmo e eu de novo: Cap. 1 - Longa jornada Novo Rio - Tiete

Aqui segue o primeiro capítulo de amostra do livro Eu, eu mesmo e eu de novo, a direta continuação do Meu ano sem ela.






1. Longa jornada Novo Rio – Tiete

“Give me the child.
Through dangers untold and hardships unnumbered,
I have fought my way here
To the castle beyond the goblin city
To take back the child that you have stolen,
For my will is as strong as yours,
And my kingdom is great.
Damn.
I can never remember that line.”

Labyrinth, 1986

            Longa jornada para São Paulo. Seis horas dentro de um ônibus, rodoviária Novo Rio, para a Tiete, minha mente no centro de um tornado. “Eu te amo, eu te amo, eu te amo.” Na cadeira ao lado, um buque de flores improvisado numa corrida pela manhã no camelódromo da Uruguaiana. De plástico, pois as vivas nunca vivem, e essas tem de viver. Vermelhas, não pretas, ela já tem um buque de flores pretas sobre a sua tv, foi o primeiro que lhe dei, ela gosta. Mas hoje quero ser clichê, o máximo de clichê do mundo, pois estou sendo tragado de novo para ele, para aquilo que os outros fazem e eu pensei não fazer mais parte. Ontem estava mudo, um muro estático de concreto a beira de um abismo, com as vigas do esqueleto a ranger, hoje tenho tudo a dizer, tenho tudo a consertar, tudo a conectar. “Eu posso fazer isso certo. Eu entendo o significado daquele abraço forte que você me deu do nada. Eu entendo que foi minha culpa. Minha culpa e eu posso consertar tudo. É isso que eu sou bom de fazer, entender e consertar. Entender e consertar.” Longa, longa jornada para São Paulo.
            - Essa é uma história que nunca venderia um livro. - disse uma vez para ela. - Uma história para ser interessante precisa de tragédia, precisa de confusão, por isso nunca vou escrever sobre a gente, nós não temos um pingo disso. - E tudo se despedaçou.

Lapa, centro boêmio, decadente, em ruínas do Rio de Janeiro, sentado num balanço no meio da madrugada. Do outro lado da rua, uma casa de show, meus amigos entre o pequeno grupo parado a porta. É uma noite de quinta-feira, tudo está deserto, menos aquele lugar. Bebi, bebi para sumir, bebi para sentir algo fora os tijolos cobertos de musgo que compõem o meu corpo. Não bebia nada nos últimos oito meses. Para que alguém precisaria seguir o padrão de se afundar em álcool numa noite carioca se tudo estava tão claro. Não havia nada a esquecer, a anestesiar, a ignorar. Agora, porém, há tudo. Parei de beber, parei de comer carne, parei de comer produtos industrializados, parei tantas coisas. Pensara, já cheguei num patamar que tenho que começar o caminho para me tornar um homem melhor, saudável, ativo, consciente de todos os meus passos. Sair de vez da facilidade domesticada de seguir a horda no que é considerado “normal”. A marcha de idiotas do “normal”, guiados pelas telas mágicas, celulares, monitores, por aqueles por trás delas que sabem se beneficiar das ovelhas embriagas, seja pelo álcool, pela religião, pelo consumo, pelos episódios de Friends e How I meet your mother. Agora nada importa, só quero me desintegrar, desintegrar na neblina que cerca o balanço, uma neblina sem propósito, eu também sem propósito. A bebida não está adiantando. Uma garota de cabelo verde fluorescente balança sozinha no banco ao lado. Penso em ser social, vou ter de voltar a fazer isso, não? Mas viro para o meu celular, olho minha última mensagem para ela. Ela me perguntou como eu estava, só lhe respondi que não queria falar. Ela quer me excluir de sua vida, que seja também de minhas palavras.
            Não sei o que fazer, não quero fazer nada, mas também não quero pensar em nada, e não adianta, penso. Acabei ali pois não aguentava ficar em casa, não aguentava olhar para as paredes se fechando sobre mim, não aguentava ver o tempo não passar. Mandei uma mensagem para um amigo com quem não falava há mais de 2 anos. “Oi, tudo bem? Qual a boa de hoje? Preciso sair, preciso beber.” Não era a primeira vez que tinha feito isso, desaparecer por tanto tempo, mas era assim que eu estabelecia amizades, descobrindo quem não se importava que eu às vezes sumia. Expliquei-lhe a minha situação, expliquei-lhe que precisava fazer algo para parar de pensar. O lugar era um bar no fim da lapa, o Tico Taco, um lugar impressionante por não ter ainda caído aos pedaços. Um casarão velho, de faixada emendada e piso a ranger e dobrar sob cada passo, mais um resquício de uma era antes da guerra nunca lutada que deixou a cidade em ruínas. Haveria um show de rock feito num palco improvisado por notórios desconhecidos. Não fui para festa, fui para falar, fui para expelir tudo que explodia em minha mente. Era o Anderson, amigo da faculdade, por coincidência ele estava passando o mesmo que eu. Conheci sua ex-namorada. É, não era tão parecido assim, uma vez fui numa festa com os dois, numa hora estavam gritando, na outra ela jogou o celular dele numa piscina, na outra estavam gritando um pouco mais. Nunca teria uma relação assim, de gritos, de lutas. Convivi por muito tempo da minha vida com isso, para na minha hora de escolher alguém, acabar do mesmo jeito. Mas não foram as brigas que acabaram com a relação deles, foi o tempo, foi o novo virar o cotidiano, foi o tédio, e sei como é isso. Vejo a garota de cabelo fluorescente sentada do outro lado da rua, no balanço do improviso de praça, na calçada de um prédio. O que faria alguém decidir se isolar assim de todo mundo, se isolar olhando para o vazio. Como era exatamente isso que queria estar fazendo, fui lá e sentei no outro banco.
- Tá abandonada?
- Não estamos todos?
- Por um tempo deixei de acreditar nisso, mas agora não vejo mais como me iludir contra isso.
- Cada indivíduo percorre a sua vida do nascimento a morte, sozinho. Todo sozinho, dos pés à cabeça, dos lábios da boca aos lábios da genitália. Quando uma mãe tem um filho e o ama. Ela faz isso porque a natureza pede mais daquilo que consegue sobreviver na luta contra todo o resto, contra ursos e motoristas no transito. E a mãe por sua vez, se não cumprir o que lhe foi empurrado como função por essa natureza, não verá sentido, se entregara ao vinho, a moda, as artes conceituais e morrerá de tédio. Logo, o filho é seu brinquedo para passar o tempo. Um brinquedo que será penalizado, se alguma hora não quiser ser mais brinquedo. Quando uma pessoa forma um grupo de amigos, uma tribo, é sua forma de dizer que não está louco, e existem outras pessoas que acreditam e se comportam das mesmas formas estranhas que as suas. Como também, é sua forma de se proteger, de se armar, contra todos aqueles que acreditam e se comportam de forma diferente. Uma tribo que caso um membro alguma hora decida acreditar e se comportar de forma diferente, o aniquilará sem piedade, o empalará nos portões da cidade. Quando você se apaixona por alguém, é de novo a manipuladora da natureza querendo que você como um sobrevivente do mundo, das estepes australianas, se junte a outro sobrevivente, e produza mais novos sobreviventes. Mas como você não quer se admitir um animal selvagem, meramente submisso a ela, você se conta um conto de fadas bonitinho, que justifique o molhar da sua vagina, ou o enrijecer do seu pênis. Você se conta uma fábula, a outra pessoa se conta outra, e com um pouco de sorte ninguém nunca descobre que está vivendo uma fábula diferente da do outro, e que só é uma massa de carne, eleita para um papel pela outra. Se você não tem sorte, eles te mandam ir se foder.
- Então, você teve um dia ruim também?
- Sim.
            Pequenas patas rangem em minha cabeça, nervosas ao redor de uma mesa. Muito barulho, muita discussão, muitos pontos de vista contraditórios sendo propostos. Olho para as mensagens no meu celular, penso em mandar algo para ela, perguntar como está, mas não, isso não seria adequado para o que está acontecendo. Uma caneca bate forte sobre a mesa de madeira, acompanhada de um grito de ordem. Quero ser indiferente, devo ser indiferente, não consigo. Ela não quis realmente conversar, ela simplesmente pegou uma arma, colocou uma bala, apontou para minha cabeça e atirou. Alguma das patas sobem e começam a pular sobre a mesa. O chefe da sessão, bate repetidamente o martelo até que todos se acalmam. Lembro-me do seu beijo, de chupar os seus lábios, sua língua. Várias antenas se enrijecem em atenção, alguém está a fazer um discurso. Lembro dos últimos beijos que lhe dei, rápidos, de quem quer ir embora logo – isso é minha culpa. O ranger aumenta, começam gritos em resposta, há patas se batendo, há uma guerra, uma guerra de baratas discutindo na minha cabeça.
Meu cérebro é habitado por 829 baratas que vivem constantemente a discutir e se revirar. Geralmente, nas horas de maior concentração ou desespero, elas se organizam ao redor de uma longa e retangular mesa. As imponentes, prepotentes, gostam de se vestir de juiz, roupa preta, peruca e martelo na mão. As submissas, por sua vez, se escondem debaixo da mesa, na lama, e só algumas raras vezes, expiam o que é discutido acima. O resto, ou só fica lá parado escutando as outras, às vezes formando o coro quando alguma das baratas imponentes fala algo inspirador, ou se tem alguma opinião própria trata de só expressá-la bem baixo, ou quando nenhuma outra está vendo. Também há aquelas que jogavam pôquer e fumavam charutos, não necessariamente ao mesmo tempo.
            Sobre o que discutem essas baratas na maioria do tempo é difícil de se tomar conclusões. A maioria das vezes parecem não estar discutindo nada de qualquer coerência entre umas e outras, só gritam, ou se remoem perdidas em seus próprios monólogos introspectivos. Durante a minha vida, aprendi com muito esforço a ignorá-las a maioria do tempo. Porém, também aprendi a seguir as crenças e regras que determinam, nas raras horas que concordam entre si. É bem raro esse momento em que concordam todas, na verdade nunca todas, mas pelo menos uma maioria, e geralmente isso não dura muito tempo. Fora que essa concordância muitas vezes ocorre por acidente, com muitas delas não realmente prestando atenção no que estão fazendo. Mesmo assim essas crenças e regras são algo que aprendi a respeitar. Não que após geradas, as baratas aceitem o que determinaram nelas. Na maioria das vezes assim que uma crença ou regra é gerada, começam os coros de reivindicações querendo sua modificação de alguma forma. É exatamente esses coros que aprendi a ignorar. Porém, há certas situações que a maioria concorda em alguma crença e depois não há questionamento sobre isso. Uma dessas crenças é que eu passaria o resto da minha vida com ela do meu lado. Agora, isso foi colocado em questão, não pelas baratas, mas por forças exteriores, e todas as baratas estão retornando a total insanidade.
            Levanto do balanço, vou para casa, preciso acordar cedo amanhã. Se é para saber realmente como ela está, que seja pessoalmente, que seja fazendo o esforço que há tanto eu não fazia mais, demonstrando que não sou só um passageiro e sim, isso é importante para mim. Tenho de ir para lá, para São Paulo. Ir para São Paulo e tê-la de volta ao meu lado.
Para mim estava tudo bem. Conversei com ela normalmente no facebook durante o almoço. Passei o dia trabalhando, e à noite voltei para falar com ela. Foi um “Hello, mi mujer!”, e ela um estranho “Você tá bem?”, eu um “Sim, tudo bem, por quê, você está passando algo?” e ai de resposta, veio um texto, um texto corte-colado, enviado num só clique. “Não aguento mais...” “as coisas mudaram, você não está o mesmo, ...” “eu não quero viver a minha vida assim, quero uma paixão de cinema, como num filme romântico” “não dá, não dá mais para aguentar uma relação assim à distância” “às vezes eu preciso de alguém durante a semana, alguém para relaxar, e só tem você aqui, na internet, me questionando” “eu quero achar outra pessoa, e acho que você tem de fazer o mesmo”.
E lendo isso, meu coração bateu uma última batida, minha pele, meus músculos, enrijeceram, tornaram-se blocos de concreto, blocos secos a passar sobre o vento de um deserto, deixando a minha voz muda, a minha mente muda. O que estava acontecendo era tão estranho, tão impensável, que não havia resposta. Se havia uma certeza na minha vida, é que não importa o que acontecesse, ela estaria lá. Era a única coisa sobre a minha vida que não tinha nenhuma dúvida. Estava pasmo. Escutei um fino rangido.
“Fala alguma coisa, por favor.” “Não sei o que falar, não consigo pensar em nada.”
O que posso dizer? Ela era minha segunda namorada, já estava com ela há 2 anos e apesar de um problema ou outro comigo mesmo, que extravasava em algumas ações ou falta de ações com ela, a minha relação com ela parecia estar bem. Nós nunca brigamos, o máximo de discussão que tivemos foi sobre gosto de filme e show, mais nada. Minha primeira relação, um namoro só de um ano, havia sido um inferno comparado a minha vida com ela. Brigas e incertezas para todo lado. Na verdade, foi esse contraste entre as duas, que me fez aprender o que podia ter realmente de bom com alguém, ver o quanto alguém poderia me fazer bem sem ter de lutar constantemente para isso acontecer, entender o quanto minha primeira relação fora um erro, uma ilusão criada pela crença que seria impossível encontrar alguém que fosse naturalmente compatível comigo. Aqueles últimos dois anos foram um paraíso comparado ao que tinha passado antes.
Minha primeira relação fora uma bagunça atrás da outra. Inicialmente uma amiga, apaixonei-me lentamente num período de um ano, acreditando reconhecer nela algumas características parecidas com as minhas, algumas estranhezas em relação ao mundo, fobias sociais, junto com alguns gostos iguais de cinema. Disso, nada foi fácil, foram uns 2 meses de conversas, de convencimentos, tudo para sair um primeiro encontro. Sendo que esse primeiro encontro foi uma continuação desse convencimento, um beijo confuso, que deu em um debate para se decidir outro beijo. Seguido de mais encontros cheios de incertezas que aquilo estava realmente evoluindo para algo. Até se estabelecer um namoro, isso quase um evento, pois acabou com algumas dúvidas que ela transmitia. Mas na verdade, abriu a porta para descobrir muitas outras. Tudo que fazia era questionado, cada plano de fazer algo diferente era respondido com negatividade, era complicado demais, cansativo demais. Eram brigas atrás de brigas, para coisas tão simples como a hora certa para segurar sua mão, para cada tipo de beijo, para onde devíamos passar o tempo entre as aulas. Sem mencionar o sexo. Uns oito meses sem nada, mas nada entre aspas, ela queria sexo, mas tinha repressões a fazer, logo substituía isso por ficar se esfregando em mim, algumas vezes batendo ossos onde não devia ter ossos batendo. Oito meses, para quando realmente começarmos a fazer sexo, este em si já estar associado a uma frustação. Enfim, uma relação horrível, mantida, porque deveria ser a única. Entrei no barco, deveria ficar até o final. Só que o final me fez me jogar do barco. Acabei o relacionamento, porque estava insuportável. E o pior foi o que passei um ano após o termino, enfrentando o fato da minha impossibilidade de gostar de qualquer outra pessoa. Sim, não foi bom, me dizia, mas era melhor que não sentir nada. Contei-me isso por um bom tempo, até que a coisa mais estranha do mundo aconteceu, a conheci.



Estranho, por ter sido tão simples. A olhei na porta de uma festa de indie rock, Veneno, Casa da Matriz em Botafogo. Entrei, ela foi a primeira pessoa com quem falei lá. Tanta coisa em comum, tantos filmes que gostávamos, falamos da Sofia Coppola, como quem não gostava de seus filmes, que os chamava de lentos, não entendia nada da vida, o humor sarcástico sobre o mundo, as músicas que sabíamos cantar todas as letras, o fato que no momento que estávamos juntos, nenhum dos dois estava mais se lixando para o resto do mundo, para seus amigos, para meus amigos, para ninguém. Nosso primeiro beijo foi ao som de Bad Things, o tema da série True Blood. “I don't know what you've done to me, but I know this much is true: I wanna do bad things with you.” Passamos à noite inteira nos agarrando e conversando, caindo contra cada parede e sofá, despertando a atenção dos seguranças por estarmos passando dos limites do lugar. Eu já completamente apaixonado, ela também. Ela um sonho se materializando, eu também um sonho para ela. Repetíamos isso um para o outro. Passei o dia seguinte dizendo para um amigo que tinha encontrado uma garota que facilmente namoraria se ela não morasse em outro estado. Dois dias depois estava com ela na minha cama, sem debates, sem confusões, só seguindo o puro desejo de um devorar o corpo do outro por inteiro. Não a minha primeira garota, fisicamente só mais uma entre muitas, porém a primeira com quem tive um real prazer, a primeira vez que não me sentia sendo roubado de algo, não mais na desvantagem com a garota sempre tendo mais prazer, se não ele todo e eu me perguntando interiormente: “É isso?”. Pela primeira vez, estava tendo uma real troca, tendo tanto prazer quanto ela, de estar ali dando prazer. O único problema era São Paulo, ela foi embora naquela mesma manhã de volta para casa, 350 quilômetros de distância. Mas também isso não foi um problema. “No carnaval, eu vou para lá!” “Sim, você pode ficar na minha casa.” Por um mês nós passamos conversando todos os dias, estourando de prazer nos olhando através de webcans. Fui para São Paulo, cheguei, agarrei-a nos braços e a levantei no ar, e mais uma vez, tudo tão assustadoramente calmo, tão simples, quase uma semana um com o corpo grudado no outro, mal saindo do apartamento. Na hora que a pedi em namoro, nas escadas de seu prédio, esse pedido nem mais fazia sentido, pois ela já era minha mulher. Foi um evento, pelo fato de não ser um evento. Agora, dois anos depois, tudo acabado. Dois anos depois, aquele texto corte-colado num miserável chat de facebook.
Quantas vezes fiz essa viagem de seis horas do Rio de Janeiro para São Paulo, e agora faço mais uma, será a última, ou a primeira de algo inteiramente novo. Tenho completa noção do porque isso aconteceu, sei que já há um bom tempo não era eu mesmo, não era o meu melhor. Tudo havia começado a se desintegrar há meses atrás. Não com a gente, mas comigo mesmo, comigo sozinho, e achei melhor não deixar ela fazer parte disso, do vazio com tudo que crescia em mim, do desconforto, mas ela acabou sendo do mesmo jeito. Não dividia nada do que estava passando, das minhas caminhadas sem direção, do fato que passava os dias como um zumbi, sem fazer nada de produtivo, pois não via mais valor em nada, mas tudo acabava vazando para ela do mesmo jeito, vazava com meu ódio aberto a tudo, tudo me parecia uma opressão querendo me dominar, séries de tv, filmes, outras pessoas, livros, hábitos cotidianos, me dominar e dominar a ela, e a única ação que conseguia fazer era apontar para isso, como se com isso estivesse defendendo alguma coisa.
Com um ano de namoro estava no meu pico como pessoa, determinado, com toda a disciplina e confiança para ter tudo aquilo que queria. Já tinha uma mulher que amo e adoro ao meu lado, agora era só conseguir o resto. Queria sobreviver com a arte, escrever, fazer filmes, fazer teatro. Comecei a produzir novos vídeos de maneira desenfreada, comecei a escrever mais, comecei a pôr em prática planos para ter sucesso. Foi ai que finalmente me apareceu um trabalho na minha área, cinema. A produção de um filme, era um trabalho de dez horas por dia, seis dias por semana, durante três meses. Aquela produção em si não era o que eu queria, era uma novela barata, roteiro ruim, atuação exagerada, não era algo a que desse real valor, mas era uma escada para chegar lá. Passados os três meses, estava esgotado como ser humano, tudo que havia começado naquele meu pico havia parado, estava decidido a investir tudo nesse caminho, era uma forma mais certa de me exibir para o mundo, mostrar trabalho, para enfim ter contatos e dinheiro o suficiente para melhor executar meus planos. Os dois meses que se seguiram foram caçando desenfreadamente uma nova produção. Consegui mais um trabalho, mais um extremamente exaustivo que só via como um degrau, e esse era pior, uma campanha política, doze horas por dia, recebendo a metade de antes, por dois meses. Mais uma vez fui drenado de todas as minhas energias, só pensando que eventualmente isso mudaria. Só faltam mais alguns degraus, para isso pelo menos começar algum tipo de fruto. Ai acabou e mais nada, meses indo atrás, mas nenhum trabalho aparecia. O dinheiro que tinha acumulado indo embora, eu exausto como pessoa, moralmente, e toda aquela minha motivação de antes de tudo isso começar, não existia mais. Quando estávamos longe, mentia falando que estava produzindo, quando na verdade não fazia nada. Quando estávamos juntos, ficava pensando que devia voltar e me focar naquilo que não estava fazendo. Meu estado mental, mesmo não querendo, passava para ela, não diretamente, mas no dia a dia, nas minhas falas, comecei a criticar tudo, tudo para todos os lados, nada estava como deveria ser. Até o sexo virou algo cansativo, algo que fazia por costume. Não tinha mais desejo de nada, me afundei em repetições inúteis. Ela lá sentindo tudo.  No nosso último encontro, até os beijos foram demais para mim, não foram mais nossas longas e selvagens trocas de saliva, foram o que eu achava que podia deixar ela minimamente satisfeita naquele momento, para eu poder ir fazer outra coisa.
No ônibus, reviso cada detalhe dos últimos meses, cada detalhe que ela pôde ter revelado do que estava acontecendo. Lembro de uma vez numa loja, ela ter pedido para me abraçar forte, e ficou assim por um bom tempo e eu não entendi da onde isso veio. Lembro dela reclamar que também sentia que não fazia nada quando eu estava lá, dos trabalhos dela, como também reclamar que a gente ficava muito tempo sentado vendo série, em vez de sair, isso quando a gente tinha saído no dia anterior. Lembro de uma noite quando do nada, ela começou a chorar do nada, eu de novo sem saber o que fazer, julgando ser hormônios.
Chego a rodoviária Tiete, saio do ônibus, coração batendo, primeira vez que não há ninguém me esperando, primeira vez que rumarei pela cidade sozinho, sozinho até encontrá-la. Decidi vir sem avisá-la, quero que seja uma surpresa, um olha eu atravesso o mundo para fazer tudo ficar certo. “But I would walk 500 miles, and I would walk 500 more, just to be the man who walked 1000 miles, to fall down at your door.” Um temporal cai pela cidade, sinto que é um reflexo da minha vida naquele momento, uma torrente de água que não sei onde vai acabar. Vejo pela hora que deve estar na USP, pego um transito para chegar lá, quero que ela só saiba da minha chegada quando estiver perto. Ligo, pergunto onde está, saiu mais cedo da USP, horas atrás, está num bar na Augusta. Mais uma vez, atravesso a cidade entre a água, a água a cair que nunca para. Prédios cinzas, poças em crateras para todos os lados, ônibus cheio. Chego na Augusta, primeira vez ali também sem ela, começo a descer, descer entre os bêbados para o meu coração finalmente parar de bater, finalmente encontrar uma resposta. Chego no bar, a observo lá de fora, está lá com duas amigas, está bêbada, está alegre. Entro, ela me olha, as amigas me convidam para sentar. Ela, não faz muito, só me dá espaço para sentar ao seu lado, lhe dou as flores, faz uma piada baixa para elas sobre serem de plástico. Falam que estavam conversando de qual comida escolher. Não entendo nada, é como se nada estivesse acontecendo, como se fosse um dia normal como qualquer outro, peço para falarmos lá fora, só nós. Chegamos lá fora. Eu confuso, ela sorrindo, bêbada.
- Como você tá?
- Eu tô bem.
- Sim, mas como você tá sobre a gente?
- Sabe, eu até tava querendo que a gente conversasse pessoalmente. Mas isso foi uma surpresa. Quando você ligou, a gente ficou pensando que você tinha vindo para me matar ou algo assim.
- O quê? Isso não faz nenhum sentido. Eu te amo!
 Vou abraçá-la, já que não tive a chance disso quando cheguei, ela se afasta, ela se afasta como seus braços tivessem repulsa de mim, apesar da sua expressão se manter a mesma, alegre, alegre indiferente. Seus olhos, completamente indiferentes. “Meu deus, está acontecendo de novo.” Eu já passei exatamente por isso com a outra. “Com ela não pode ser o mesmo, ela me ama de verdade, isso não está acontecendo.” Aqueles braços que por tantas vezes apertei ao redor, que por tantas vezes beijei, mordi, aqueles braços que eram uma extensão dos meus, agora me tratando como uma doença. Aqueles olhos que não paravam de me olhar, agora não sou nada. Quebro.
- É tudo minha culpa, me desculpa, eu tava fora do ar, eu te negligenciei, eu entendo isso agora, eu te amo, eu quero consertar as coisas. 
- Não, como eu já disse não dá mais, eu quero experimentar outras coisas, eu já tô há um bom tempo assim.
- Eu sei como eu tenho sido recentemente, negativo com tudo. Eu lembro quando a gente se conheceu e você me disse que não gostava de gente negativa. Eu me deixei ficar assim, eu fiquei chato recentemente, perdido. Eu sempre quis ser o máximo para você, e eu me deixei virar o namorado chato que reclama de tudo. Me desculpa, isso não sou eu, deixa eu te mostrar isso.
- Mas não é de agora, eu tava mostrando o meu diário para as minhas amigas, eu tenho anotação de uns 8 meses que eu estava me sentindo mal com algumas coisas, e isso foi só acumulando.
- Me desculpa, deixa eu provar que eu não sou isso. Eu tô relaxado, tô relaxado comigo mesmo, por problemas meus, e isso passou para você, passou para tudo na minha vida. Por isso eu ataquei daquele jeito aquele filme que você viu, eu vejo erro em tudo. Eu vi o erro que foi aquela reação para um filme que você gostou. Mas eu não vou mais deixar isso acontecer, eu vou voltar ao normal.
- Mas eu não quero mais tentar. Eu era muito jovem quando a gente se conheceu, tava começando a sair, eu nem tava pensando em namorar, mas ai aconteceu. E eu sempre tive essa dúvida, porque eu queria ter experimentado mais antes. Eu quero sair agora, conhecer outras pessoas. Você tem de fazer isso também, achar alguém que não tenha problema com esse jeito que você é!
- Mas eu não sou assim, eu tava ruim. E eu não quero mais ninguém além de você, você é a minha mujer! Você quer jogar fora 2 anos das nossas vidas como se não tivessem sido nada?
- Dois anos da minha vida jogados fora. (Fala baixo para si, como se eu não estivesse lá para escutar.)
- Você me dizia que nunca queria me perder da sua vida, que me queria pela eternidade, e que tinha medo de algum dia não me ter do lado para dividir as coisas.
- É... as coisas mudaram.
- Tudo que a gente fez, nossas aventuras no mato, eu te carregando para todos os lados, as nossas viagens, tudo isso jogado fora.
- Tudo isso é bom como uma recordação, eu não vou perder isso.
- Me dá uma segunda chance!
- Eu já dei, muitas vezes!
- Isso não vale, eu não sabia de nada, para mim estava tudo normal, você não pode ter me dado chances, para algo que eu nem sabia que estava errado.
- Você sabe como eu sou, não sou de falar as coisas. Mas eu demonstrei da forma que eu podia o que tava acontecendo.
- Eu achava que aquilo era desentendimento comum de um relacionamento de longa duração. Eu não sabia que você tinha tanto problema com a gente.
- Eu te disse, eu sou assim.
- Me desculpa, eu vou te escutar melhor. Esse relaxamento não sou eu, você vai ver.
- Você fala isso agora. Pode até voltar a ser o que era no nossa primeiro ano, mas ai depois você vai voltar a ficar assim. Você é assim.
- Não, isso não sou eu, isso nunca fui eu. Eu fiquei mal por causa do fracasso que tive naqueles trabalhos, e deixei isso me tomar, eu não sou assim, vou te provar isso.
- Mas eu não posso ter certeza, e se você voltar a ser assim, eu vou ter perdido mais tempo, e eu não quero isso, eu quero conhecer pessoas diferentes.
- Vai ser a mesma coisa, você vai construir tudo do zero, para depois ter os mesmos problemas. Isso é normal numa relação, a gente tem problema, conversa sobre eles, resolve, e o que seguir vai ser melhor que antes.
- Mas eu não quero voltar a namorar. Eu quero... não me leve a mal por falar isso, mas eu quero ter a minha fase na vida de vadiagem.
- Eu já tive isso, e não valeu nada, foi um inferno procurando alguém que eu realmente me importasse. Por isso eu falo tão mal daqueles filmes, eles vendem isso como se fosse uma fase natural e boa da vida, de aprendizado, você saindo e conhecendo um monte de gente, mas é um inferno. Eu trocaria tudo isso por só ter conhecido você.
- Você sabe disso, eu não sei. Eu quero descobrir, eu quero poder falar que passei por todas essas coisas.
- É inútil.
- Eu não me importo. Fora que também eu não quero mais ter uma relação à distância, eu quero alguém ali quando eu precise. Você nem pôde ir na minha formatura!
- Eu tava trabalhando no dia.
- Mas é isso, muito longe, eu quero conhecer alguém daqui, eu quero ter essa oportunidade, alguém que quando eu precise esteja há 30 minutos de distância.
- É isso então, para você não importa se a gente nunca mais se ver?
- Claro que me importo, mas não mais como namorados.
            - ..., nós vivemos em estados diferentes, a gente se vê porque eu venho para cá e você vai para lá, isso não vai acontecer se a gente não estiver juntos, a gente não vai mais se ver.
            - A gente tem o facebook. A gente pode continuar dividindo as coisas, eu não quero perder isso.
            - É isso, amigos de facebook que nunca se veem? Dividir o que, como você está saindo e conhecendo outros caras?
            - Não, isso a gente não precisa dividir.
            - Eu te amo, ...! Eu não vou poder conviver com você como um amiguinho de internet. É isso, se a gente não tiver juntos, acabou, pufft. Nós nunca mais vamos nos ver, nós nunca mais vamos dividir nada.
            - Eu não quero isso, mas se for assim.
Quebro mais um pouco, algumas lágrimas começam a sair dos meus olhos.
- Ai, não faz isso, eu nunca te vi chorar em todo esse tempo. Não faz isso agora.
- Eu não vou. Vamos para aquele beco ali que tá mais vazio.
Vamos para um beco, sujo, alaranjado, molhado da chuva. Encosto-me contra a parede, ela a minha frente.
- Última vez que tive aqui também tava chovendo assim. Você não tava feliz quando a gente corria pela Paulista com água até os joelhos?
- Sim, era bom mas a vida não é só isso.
- Eu entendo o que está acontecendo, porque você não falava as coisas, você tava acumulando isso tudo há um bom tempo e agora explodiu de uma vez só, e você só tá focando no lado negativo das coisas. Esquecendo toda a imensidão de coisas boas que a gente fez junto. Eu também tenho um diário no PC com anotações, e eu faço a mesma coisa, só anoto o negativo, em vez de buscar o positivo. É esse eterno foco no negativo que levam as coisas para o buraco.
- Você tem um diário? (Fala com raiva.)
- Sim.
- Não é assim, eu não anoto só o negativo. Tem também o bom, mas como disse nos últimos meses tem mais negativo que positivo, era todo o bom de antes que fez eu aguentar. Você quer ler ele?
- Não, é claro que não, com as coisas desse jeito. Eu morro se eu ler ele. Droga, se você não tava bem e eu tava cego demais para ver isso, você devia ter feito algo. Droga, a gente tá nisso juntos. Eu sei consertar as coisas, se eu sei que elas tão erradas, ainda mais se eu soubesse que estava no risco de te perder. Você é a pessoa mais importante do mundo para mim! Se tinha algo de errado, você devia ter feito algo, não deixado acumular para explodir agora. Você devia ter me dado um tapa e falado, ... acorda!
- Eu não sou violenta, eu nunca ia ter feito isso.
- O quê? Eu não estou dizendo literalmente, meu deus. Droga, eu não devia ter a responsabilidade de tudo. A gente tava junto, tudo não devia ser só a minha ação.
- Eu sou assim, eu não conseguia falar nada. Você não pode pedir algo que eu não sou. Eu só podia falar o que eu podia. Eu até te falei daquele vez que eu senti atração por outra pessoa, e você só ficou irritado e depois esqueceu.
- Eu também me sinto atraído por outras pessoas. Eu não sabia que eu podia estar em competição com outra pessoa.
- Você não tá, eu não quero ninguém, eu só quero descobrir as possibilidades.
- Você quer voltar ao que era antes da gente se conhecer. Ao que? Ao primeiro cara que você fez sexo e depois sumiu no dia seguinte. É isso? Pessoas que não se importam com nada, em que nada vale alguma coisa.
- Não, é claro que não, eu sou uma pessoa diferente agora. Eu sei fazer escolhas melhor, eu sei o que eu quero.
- Vai ser uma fileira de gente que não quer nada de verdade.
- Não me importa, não me importa que eu passe o resto da vida sem encontrar mais alguém, eu quero tentar. Eu quero sentir o que eu senti de novo!
- Mas você pode, eu posso fazer você sentir isso de novo.
- Não, já disse que não quero mais, eu não quero não mais saber o que tem lá fora.
- É isso então, puft, puft, puft, acabou. Pode ir embora então, eu não vou mais te incomodar.
- Mas você vai ficar bem?
- Qual diferença isso faz?
- Eu me importo.
- Eu não vou me matar, ou qualquer coisa parecida, você pode ficar tranquila. E me apaga como namorado do facebook, que eu não tenho coragem de fazer isso.
- Tudo bem. (Ela me abraça. Eu abraço de volta, forte, por um longo tempo. Sei que é a última vez que isso vai acontecer.)
- Seja feliz!
- Você também.
- Adeus.
E ela vai, e vai seu olhar de amor, como eu fosse a única pessoa do universo, vai seu grande sorrido, vai milha língua em sua orelha, fazendo a rir sem parar, vai seus dedos entrelaçados nos meus, vai eu puxando ela para correr pelo sinal aberto, vai eu carregando ela nos braços para cima e para baixo, vai eu levantando ela no ar toda vez que nos encontrávamos, vai o nosso corpo unido, molhado, ofegante, vai nossos malabarismos na cama, no sofá, no banheiro, no chão da sala, atrás de árvores, no meio de livrarias, em herbários do jardim botânico paulista, vai nós deitados um do lado do outro, nus, derretendo, olhando para a imagem de um globo grudada no teto do seu quarto, vai eu tirando milhares de fotos dela, tendo ela como a minha modelo particular, vai nós cantando juntos e rindo para uma webcam, vai a atriz dos meus melhores filmes, vai a única pessoa nessa vida que eu pude realmente confiar. Fica eu. Naquele beco, estirado contra uma parede, estático num momento em que nada mais vale na vida, olhando os buracos entre as pedras antigas do chão, cobertas agora do laranja das luzes noturnas. Um verme sai entre as pedras. Saudação ao verme, saudação ao imperador verme, longa vida imperador verme! 
Saudação ao imperador verme, que comanda a vastidão do nada, espremer-se entre pedras frias e sujas!
Saudação ao imperador verme, que se apresenta ao mundo como um pênis retraído, impotente a qualquer desejo, potente ao vazio!
Saudação ao imperador verme, porque aqui ele chegou e daqui não sairá!

Na escuridão, ouve-se um rangido.

Continua...

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