A Queda

Um homem cai por uma imensidão vazia, olhando o nada que o cerca. Uma garota caindo na direção oposta, agarra-o e senta-se em seus ombros, cobrindo com suas mãos os olhos dele.

- Quem senta em meus ombros e cobre os meus olhos? – pergunta o homem.

- Ninguém – responde a garota.

- Ninguém me acompanha nesta constante queda. Imagino quando haverá alguém para fazê-lo – diz o homem, pensativo.

- Sim, ninguém acompanha-o nesta terrível queda. Sua horrível e interminável queda para todas as direções verticais e horizontais do vazio eterno. Vazio frio e absoluto! – exclama a garota, retirando as mãos dos olhos dele, estes que se fecham com essa ação, e abrindo-as no ar de modo trágico. – Ó, o horror, o horror! – exclama com um profundo pesar.

- Sim, é ruim – diz o homem com certa indiferença, mantendo seus olhos fechados.

- Então, por que está caindo desta vez? – pergunta a garota, voltando com suas mãos para os olhos dele.



- Desta vez? – interroga o homem revoltado. – Esta é a primeira vez que caio – afirma com certa determinação, mas acaba ficando depois em dúvida.

- É claro, claro – responde a garota com certa ironia. – Por que está então caindo desta primeira vez?

- Caio por essa imensidão eterna, simplesmente porque isso é só o que sei fazer – responde o homem, colocando suas mãos sobre as mãos da garota que cobrem seus olhos. – Desde que descobri que podia cair, só isso tenho feito.

- Não sabe voar? – pergunta a garota, tentando levantar suas mãos, mas não conseguindo devido as mãos do homem que as pressionam fortemente.

- Não, não sei – responde o homem tristemente.

- Nem para os distantes picos gelados onde o ar como o tempo reina numa rarefeita solidão, ou sobre os vastos mares azuis que descem para o total desconhecido onde nascem magníficas e complexas criaturas que esporadicamente se apresentam em sua superfície para esporádicos voadores passantes, ou pelas escuras nuvens trovejantes onde pujantes cargas de energia brincam entre si em completa indecisão, ou rente extensas colinas verdes cobertas por uma eterna densa grama onde se perdem os mais inteligentes seres? – pergunta a garota com entusiasmo, conseguindo mover um pouco suas mãos para frente, tentando fazer suntuosos gestos. Todos impedidos de atingir seu completo e perfeito desempenho pelas mãos do homem.

- Não, já disse que não sei. Não me pergunte de novo – responde o homem irritado.

- Não sabe andar?

- Não.

- Nem pelas isoladas praias de litorais infinitos, ou pelas densas verdes florestas repletas de gigantescas árvores de idades há muito esquecidas, ou pelas movimentadas ruas banhadas na escuridão da noite por múltiplos néons de diversas cintilantes cores, ou por vastos corredores de infinitas alturas repletos de livros à luz de velas…

- Não – resmunga o homem, interrompendo-a.

- Nunca soube?

- Não.

- Então, cai da onde?

- Caio do nada – responde o homem irritado, retirando suas mãos das mãos dela. – Por que o interrogatório? Por que ninguém não me deixa cair pelo vazio sossegadamente? – pergunta cansado.

- Tédio. Não tenho mais nada o que fazer – diz a garota olhando para o nada, mantendo as mãos, mesmo agora livres, sobre os olhos do homem. – Então, por que cai do nada?

-  Você não vai parar, não? – pergunta o homem irritado.

- Não – responde a garota sorrindo.

- Vou responder, então – diz colocando suas mãos sobre as pernas da garota que cobrem seus ombros.

– Vê se me entende para não ter de me perguntar de novo. Há muito o nada não foi nada. Não que tenha sido alguma coisa, mas mesmo sendo sempre nada, pelo menos por um tempo, que nunca ocorreu, não foi só nada.

- Foi alguma outra coisa?

- Sim e não. O nada foi algo que era nada, mas parecia com alguma coisa que não era nada, mesmo o sendo.

- Você está inventando tudo isso, não? Só para ter algo para me responder – diz afastando um pouco as mãos dos olhos dele.

- Eu posso calar a boca. Quer? – pergunta meio irritado, afastando as mãos um pouco das pernas dela.

- Não, continue. Só não espere que eu o leve a sério! – exclama reaproximando suas mãos sobre os olhos dele.

- Onde eu estava? – pergunta reaproximando suas mãos sobre as pernas dela.

- No nada, acredito.

- A questão é bem simples. Antes não caía, porque no nada que era alguma coisa, mesmo sendo nada, tinha um chão sólido.

- Só um chão?

- Não, tinha outras coisas como paredes, pessoas, paisagens…

- Verdes colinas e ruas à noite banhadas em néon?

- Em algum lugar, provavelmente. Mas deixe eu continuar. Nesse nada por um tempo tudo pareceu-me muito sólido e existente. Não sabia realmente que estava no nada. Andava por muitos lugares e algumas raras vezes até chegava a voar.

- Ó mentiroso! Então, já chegou a andar e voar. Respondera não, só por odiosa comodidade?

- Não, não minto para ninguém. Nunca andei ou voei, só pensei tê-lo feito quando na verdade estava parado no mesmo lugar. Só notei-o mais tarde quando o fatídico me ocorreu!

- Ó, o horror, o horror! – exclama a garota, levantando tragicamente suas mãos para o alto, mas voltando-as rapidamente para os olhos do homem, logo após acabar seu espetáculo trágico.

- Ninguém não é  nem um pouco normal – diz o homem com ironia. – Voltando. O fatídico me ocorreu, vindo de seu oposto, o magnífico. Por um curto período de tempo, alguém que definitivamente não era ninguém sentou-se sobre meus ombros e ali ficou. Até, que por cegueira minha, caiu. Caiu para nunca mais voltar.

- Ó, o horror, o horror!

- Pare! Assim, a culpa pela queda do alguém que não era ninguém, me fez tropeçar e cair para o sólido e existente chão. A falta do peso sobre meus ombros enfraqueceu minhas pernas e me corroeu por inteiro. Fiquei por muito tempo com a cara no chão, mas finalmente quando o meu vazio se cansou de pedir para ser completo, ganhei novas forças e me levantei. Tudo começou a ficar mais claro a partir de então.

- Você finalmente começou a ver a verdade ao seu redor, entender profundamente todas as minuciosidades do ambiente, as complexidades escondidas à vista de todos, o sentido de tudo que não faz sentido fazendo sentido! – exclama a garota extremamente entusiasmada com a história.

- Não, tudo realmente começou a ficar mais claro, sabe, como claridade, mais luz, mais branco. As paredes, a paisagem, o cenário começaram a ficar transparentes, revelando um grande branco fundo vazio.

- As isoladas praias e as escuras nuvens trovejantes também?

- Sim, também. Eu vou parar de falar!

- Não interrompo mais. Pode continuar.

- Então, tudo estava transparente. O tempo foi o primeiro a ganhar minha atenção, com o espaço transparente, todas as páginas do passado, do presente e do futuro se sobrepujaram umas sobre as outras. O segundo se tornou minuto, que se tornou hora, que se tornou dia, que se tornou ano, que se tornou por fim século. Uma eterna lentidão.

- Uma tediosa lentidão.

- Sim, uma tediosa lentidão assombrada pela culpa, pela falta, pela necessidade de completeza.

- Necessidade que nunca se concretizou. A culpa era forte demais, não? O peso do alguém que não era ninguém nunca poderia ser substituído. Não por você?

- Isso não interessa e não faz parte da história. Deixe-me continuar. Então, com o espaço transparente todos os lugares se tornaram os mesmos e o todo se tornou o nenhum. Não importando o quanto eu me deslocasse, quanto o cenário mudasse, sempre estava no mesmo lugar.

- E sempre estará, não?

- Pare! O mesmo lugar, uma massa uniforme que só mudava visualmente e que nada me fazia sentir além de um mesmo frio vazio. Todas as minhas viagens eram sem destino. Movia-me de lugar algum para lugar nenhum.

- Nunca sabendo realmente onde estava – diz a garota demonstrando profunda solidariedade com a questão.

- Sim, você entendeu. Você sabe do que estou falando! – exclama o homem, feliz por ser compreendido.

- Não, era meio óbvio e eu gosto de brincar com a sua mente. É divertido!

- Calo-me! – exclama em fúria, tirando as mãos das pernas da garota e cruzando seus braços.

O homem se cala. Assim, a garota desce as mãos de seus olhos e colando seus dedos indicadores em cada extremidade de sua boca, abre-a.

- Continuo calado.

- Acabou de falar! – exclama a garota.

O homem continua calado. Então, a garota resolve cruzar suas pernas e tenta sufocá-lo.

- Continuo calado.

- Continua a falar – diz ela com convicção.

Desistindo finalmente, ela volta com as suas mãos sobre os olhos dele.

- As pessoas ficaram também transparentes? – pergunta a garota com indiferença, demonstrando nenhum interesse.

- Não, não no começo – responde o homem, voltando a colocar suas mãos sobre as pernas dela. – Primeiro elas todas começaram a se parecer entre si. Tornaram-se seqüências repetidas, padrões de pouca originalidade, números tediosos. Tudo com pouquíssimas raríssimas exceções.

- Nenhum alguém que não fosse ninguém nessas exceções?

- Não e mesmo se tivesse, eu estava corroído demais pelo vazio para poder enxergar e deformado demais pela primeira queda para ser visto.

- Ou talvez você só quisesse estar assim!

- Ou talvez a claridade tenha sido tão grande que o mais simples se afundou na total confusão. Mas isso não importa mais, já que só me resta agora cair. Foi aí que tudo acabou. O tempo deixou de ser transparente para sumir completamente, o mesmo com as paredes, as paisagens, todo o cenário, por fim todas as pessoas e, então, o chão. O chão deixou de existir, deixou como todo o resto de ser importante. Assim, cai.

- Mas o fantasma da culpa nunca ficou transparente, nunca deixou de existir. Você nunca deixou de se importar com ele. O fantasma que é dois: a culpa e a falta. Você nunca mais conseguiu separar os dois, não? Nunca sozinho, isso seria complicado demais.

- Isso não importa. A história acabou, assim cai do nada e continuo caindo. A ninguém mais isso deve interessar – diz o homem soltando as pernas da garota, que por sua vez solta seus olhos e cai para uma direção oposta a dele.

Parte integrante do livro Um Grito no Vazio para o Nada!

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